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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A Ficha Limpa e o Supremo Tribunal Federal


POR MÁRLON REIS
 A sociedade brasileira está à espera do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 30, proposta pelo Conselho Federal da OAB, em que se afirma a plena compatibilidade da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar n° 135/2010) com os princípios afirmados pela Constituição Cidadã.
No centro do debate está a resposta a uma indagação primária: inelegibilidade é pena criminal ou condição para o registro da candidatura? Da resposta a essa pergunta decorre a verificação da aplicabilidade dos princípios da presunção de inocência e da irretroatividade da lei penal.
Então, o que de fato é uma inelegibilidade? Inelegibilidade não é uma sanção, mas uma condição jurídica. Enquanto as sanções implicam em limitação ao exercício de direitos preexistentes, as condições constituem requisitos para o acesso a novos direitos.  As condições permitem verificar se o pretendente possui as qualidades necessárias ao alcance do direito. 
Em matéria eleitoral, as condições aparecem como características que os postulantes devem ostentar como requisito para a obtenção do registro da sua candidatura.  Ninguém nasce candidato; adquire-se essa qualidade tão-somente após a verificação do preenchimento dos muitos requisitos objetivos definidos na
Constituição e nas leis.
A Lei da Ficha Limpa instituiu novas condições para as candidaturas. Por meio dessas novas cláusulas, se estabeleceu o perfil que a sociedade contemporânea espera dos candidatos.
Quando se afirma que alguém já condenado por um tribunal (órgão colegiado)  por narcotráfico, pedofilia, homicídio ou corrupção não pode lançar-se candidato, não se leva em conta sua eventual culpa pelo delito que lhe é atribuído, mas tão somente a existência de um dado objetivo:  a condenação.
Segundo as normas brasileiras, os analfabetos e, em certas condições, os cônjuges de mandatários são inelegíveis. São boas demonstrações de que a inelegibilidade não possui caráter punitivo.
Da mesma forma, os condenados por tribunais nos casos gravíssimos que a lei menciona são afastados, pela lei, do acesso à candidatura, pouco importando se são ou não culpados. A culpa – elemento subjetivo –haverá de interessar apenas à Justiça Criminal. À Justiça Eleitoral, no momento de processar os pedidos de registro de candidatura, importará apenas a verificação de dados de natureza objetiva (se é alfabetizado, se atingiu a idade exigida, se não possui condenações em certas hipóteses etc.).
Enquanto a pena tem suas lentes voltadas para o passado (um fato que torna o  responsável passível de punição), a inelegibilidade tem sua vista projetada  para o futuro: interessa-lhe a proteção dos mandatos, dificultando o seu  acesso  por parte de pessoas que ostentam indicadores objetivos de que podem  pô-los em risco. Daí porque não há falar-se em aplicação do princípio da presunção de inocência. A inelegibilidade dos cônjuges de mandatários, por exemplo, deriva de uma presunção normativa de que ela implicaria em risco para o equilíbrio dos pleitos. Isso seria simplesmente incogitável em matéria criminal, mas constitui a base do Direito Eleitoral. 
É a própria Constituição quem reclama a adoção de tais medidas, ao estipular que  “Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade  para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato (…)”  (§ 9° do art. 14 da CF).
Como se vê, enquanto a sanção penal tem propósitos punitivos, a  inelegibilidade tem por meta o estabelecimento do perfil esperado dos  candidatos. Essa é a finalidade de todas as exigências fixadas na Lei da Ficha Limpa. Isso é assim porque nos domínios eleitorais prevalece o princípio da proteção, afirmado expressamente no citado § 9º do art. 14 da Constituição Federal.
Registre-se, por outro lado, que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que “(…) inelegibilidade não constitui pena. Destarte, é possível a aplicação da lei de inelegibilidade, Lei Complementar n° 64, de 1990, a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência” (MS 22087-2, Rel. Min. Carlos Velloso. Diário da Justiça, 10/05/1996. Ementário nº 1827-03).
Em resumo, o Supremo Tribunal Federal precisa apenas seguir os seus próprios precedentes para afirmar a plena compatibilidade da Lei da Ficha Limpa com a Constituição da República. Se desejar seguir caminho inverso, terá que realizar a tarefa de dizer que inelegibilidade é pena, malferindo assim os rudimentos da Teoria do Direito e a sua própria jurisprudência.
Se até 2010 foram aplicadas as flácidas normas até então vigentes, a partir de agora o rigor aumentará em razão da vontade manifestada pelo povo por meio da iniciativa popular de projeto de lei que motivou a edição, pelo Congresso, da lei conhecida como Ficha Limpa.

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